quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Retalho 1 - Na hora do adeus

Há dias voltei à Escola onde estive mais de vinte e cinco anos.
Ao longo de toda a minha vida profissional, nunca pensei de forma sistemática, no dia do adeus, no dia da minha ultima aula, no dia de arrumar as "tralhas" para regressar a casa. Fazia-o por vezes, quando algum colega se aposentava, mas rapidamente desviava o pensamento para outros assuntos, uma vez que esse dia ainda vinha longe... pensava eu.
E... ali estava ele, por opção minha é certo, mas tinha chegado.
Já com tudo arrumado para partir, um último olhar para as paredes, para os móveis, o painel de ferramentas, que ao longo do tempo, comigo conviveram diáriamente, e testemunharam de uma uma forma silenciosa as estórias que ali vivi, algumas das quais me passaram na mémoria, qual filme em movimento acelerado.
Recordei a estupfação estampada no rosto dos alunos acabados de chegar ao quinto ano, a sua cara de espanto, quando na primeira aula e apontando para o painel de ferramentas, dizia com voz austéra " Agradeço que não esqueçam isto durante a vossa vida... AS MAQUINAS E AS FERRAMENTAS NÃO PERDOAM ERROS", o que me valeu a inexistência de qualquer acidente grave em trinta e cinco anos de leccionação.
Vi os rostos de tantos e tantos miúdos, hoje homens e mulheres, que ao longo do tempo passaram por aquelas cadeiras e mesas, lembrei os seus sucessos e fracassos, o sorriso de satisfação após terem conseguido concluir com êxito, uma tarefa que à partida lhes parecia "impossível", como por exemplo construir um livro.
Lembrei-me de alguns deles... a Madga, que aos 12 anos desenhava vestidos de noite, que qualquer estilista não se importaria de assinar, do André que pintava em cerâmica como poucos, da criatividade do Deep, o rigor de trabalho do Ivo, a capacidade de adaptação do Gil a qualquer situação nova e.... tantos outros.
A construção do painel de ferramentas, da mesa de luz, da maquina de cortar esferovite, do painel de ajulejos, hoje colocado na entrada da Escola, a pintura manual de inumeras T-Shirts, que envergavam com um sentido orgulho.
Vieram-me à memória recordações da sala cheia com a turma que estava em aula normal e mais os outros que, quando tinham um "furo", procuravam a porta que sabiam, sempre aberta. Enfim..... A MINHA ESCOLA.
Era o tempo em que, hoje e na óptica de muitos, a escola não tinha qualidade, os professores não queriam fazer nada, trabalhavam poucas horas, não tinham rigor nem exigência, os alunos tinham de respeitar alguns princípios e valores, aprendiam a ler e interpetar, a calcular, adquiriam conhecimentos científicos nas mais variadas àreas, desenvolviam a sua capacidade psico-motora e a destreza física.
Hoje... tudo é diferente, para melhor dizem, há.... os PTs (Professores Titulares) para coordenar e avaliar os Professores... o PNL (Plano Nacional de Leitura)... o PNM (Plano Nacional da Matemática).... o PE (Projecto Educativo) .... o PAAE (Plano Anual de Actividades da Escola).... o PCT ( Projecto Curricular de Turma)... o PIT (Plano Individual de Trabalho).... as Planificações a... Longo.... Médio... e Curto Pazo... as Diárias.... o PA (Plano de Acompanhamento) ... o PR (Plano de Recuperação) ... as OTE (Ocupação dos Tempos Escolares)... o Choque Tecnológico... o Magalhães... as NO (Novas Oportunidades)... a Integração Plena... as Estatísticas... a CERTIFICAÇÃO!!!!!!!!!!!!
São, na minha óptica, planos a mais, papéis a mais, a maioria completamente inúteis, elaborados no sistema de "copy/paste", mas que tiveram o efeito de "ocupar" os Professores e desumanizar a Escola, a MINHA ESCOLA,... por isso parto sem a mínima saudade, com um sentimento de Libertação que nunca pensei sentir e com a consciência de que não contribuí para o "assassínio" ético-cultural de pelo menos uma geração.
Um Abraço e até ao.... PRÓXIMO RETALHO

3 comentários:

  1. Profundo, palavras do verdadeiro professor, o que fica é a memória dos alunos e não dos problemas, da falta de condições e dos fracos ordenados. Quando fica a memória daquilo que muitos se esqueçem e o verdadeiro existir da escola que são os alunos, saudo-te como um verdadeiro professor e não um "Docente", daqueles que estão preocupados com critérios e planos e horários, em suma aquilo que não interessa à educação.
    Fica sempre o verdadeiro amor aos alunos e à verdadeira profissão.
    Filipe Quintino

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  2. Olá

    Como vês vim fazer-te uma visita.
    Desejo tudo de melhor para este teu projecto!
    Já está na minha lista de favoritos.

    Parabéns e muita força!

    Antónia

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  3. A tua sala de aula, onde ultimamente te via de volta dos led's dos robots porque estes não acendiam, semore foi um local onde eu pude sempre entrar e aprender... ou então simplesmente ficar a ver-te. A 1ª vez que vi linóleo foi contigo quando fomos à Bienal da Gravura à Amadora... e mais, foi na tua sala de aula que eu andei de carrinhos de rolamentos...:D
    era uma sala agradavel

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